Fazia tempo que algum acontecimento tivesse sido capaz de provocar a
efervescência suficiente para acionar o gatilho da vontade de escrever. Ideias
que vão sendo maturadas, esculpidas e aglomeradas, quando de repente resolvem
explodir na forma de um texto.
Hoje é dia 15 de março de 2015, exatamente 632 dias depois do dia 21 de
junho de 2013, quando escrevi, neste mesmo espaço, sobre minha experiência de
ter ido a uma manifestação. Hoje falo da confortável posição da minha
"varanda gourmet", que é a minha escrivaninha. Por um lado fico feliz
que várias pessoas tenham saído de suas varandas gourmet no dia de hoje para ir
às ruas manifestar o direito básico de se manifestar num país democrático.
Mas, curiosamente, contra a democracia, em muitos aspectos.
Naquela ocasião, o movimento era dotado de uma heterogeneidade
interessante que fez as pessoas irem às ruas com diversas (legítimas) pautas.
Me lembro que a minha pauta era a não-violência, apesar de achar que várias
outras pautas também mereciam atenção. Os protestos de hoje me parecem menos
heterogêneos: a pauta é contra a corrupção (claro, alguém é a favor da
corrupção além dos corruptos?), fora o PT, Dilma vai tomar no **, e a favor do
impeachment, entre outras coisas. Ah sim, como não poderia deixar de lembrar: a
favor da intervenção militar.
Será que essas pautas são realmente válidas? O exercício de tolerar a
intolerância é sempre muito difícil. Mas presenciar isso me fez pensar sobre o
que leva as pessoas a levantarem certas bandeiras.
Nesse contexto todo acabei me lembrando do livro “A Ideia de
Justiça”, de Amartya Sen. Logo no capítulo I, Sen aborda a relação entre “razão”
e “objetividade” citando Wittgenstein: I
work quite diligently and wish that I were better and smarter. And these both
are one and the same. O que o filósofo quis dizer com essa passagem? Segue a interpretação de Sen, que é por sinal bem
interessante:
Lack of smartness can certainly be one source of moral
failing in good behaviour. (…) It is not particularly smart for a group of
people to act in a way that ruins [the rules of good behaviour which can help
everyone].
Nesse primeiro momento, a ideia é que uma das causas de problemas morais
é a ausência do uso da razão, ou seja, a busca por ideais não escrutinizados
pelo exercício da razão. Ainda:
[…] perhaps his [Wittgenstein’s] point was that
being smarter helps us to think more clearly about our social concerns and
responsibilities.
Em outras palavras, pensar sobre nossas ações nos ajuda a ter uma visão
mais clara sobre as regras sociais que nos orientam, bem como nossas
responsabilidades dentro desse arranjo social. Por fim:
The remedy for bad reasoning lies in better
reasoning, and it is indeed the job of reasoned scrutiny to move from the
former to the latter.
Muitas vezes na história da humanidade, as pessoas foram orientadas por “bad
reasoning”, o que significa que o uso irrestrito da razão não garante um
arranjo social que seja bom para todos (vide o histórico de ditaduras e etc).
Por outro lado, “good reasoning” pode nos ajudar a chegar mais perto do que
desejamos como sociedade, seguindo o caminho que nos distancia do estado de
natureza.
Por que tudo isso? Pelo fato de estar presenciando, neste momento, um
monte de pessoas que foram às ruas sem esse exercício da razão. Afinal, pedir pelo
impeachment leva ao que exatamente? Pior, pedir pela intervenção militar não é
uma pauta totalmente “unreasoned” num país que passou tão recentemente por um
regime militar? Será que a manifestação por um país melhor precisa passar por
cima de certas regras de convívio social conquistadas com tanto esforço?
É necessário mais reflexão, mais estudo mesmo. Mais exercício de “reasoning”
antes de ir às ruas. Apesar de ser visível uma maior articulação da sociedade
sobre a política, há ainda muito a se aprimorar na democracia brasileira, ao
contrário de pedir pela não-democracia. O exercício da razão é necessário para
viver um arranjo democrático, escrutinizar nossas razões se colocando no lugar
dos outros e manifestar por direitos, contra as injustiças manifestas, mas tudo
isso tendo passado pelo escrutínio da razão.
Quando vejo pessoas nas ruas levantando bandeiras como essas e ainda,
pior, levando tudo aquilo como uma grande brincadeira, fico um pouco triste com
os caminhos do país. A nossa democracia ainda possui uma certa fragilidade, em
parte porque existe gente que realmente propaga ideais anti-democráticos, e em
parte pela falta de exercício da razão (pública). Acho que é mais um sinal de
que falhamos na base, na educação para a cidadania, no exercício, desde cedo,
dos valores democráticos, e no estudo e no desenvolvimento intelectual da
sociedade.
We need to be “better”
and “smarter”.